Título original: O Outro Boom do Bitcoin: Mineração de Cripto em Territórios Sombreados da Rússia

Autor original: Neil Barnett, RUSI

Tradução original: Felix, PANews

Em um mundo onde o Kremlin está cada vez mais isolado e focado em operações de influência estrangeira, há um forte incentivo para a mineração de Bitcoin para realizar atividades transfronteiriças. À medida que o mercado de gás russo encolhe, a conversão de energia excedente em eletricidade e depois em criptomoedas está se tornando cada vez mais comum. Desde 2018/19, essa situação tem ocorrido em grande escala nos "territórios sombreados" da Rússia (margem do rio Dniestre, Donbass e Abecásia). A exploração dessas categorias legalmente ambíguas pode encobrir a realidade e permitir o saque dos recursos de gás e eletricidade do estado russo. E, como é típico da Rússia pós-soviética, as ações são realizadas por participantes do setor privado.

Como converter energia barata em moeda anônima

O anonimato do Bitcoin é questionado por defensores das criptomoedas, que apontam que o Bitcoin é rastreável e que as criptomoedas oferecem, na verdade, uma transparência sem precedentes. Embora isso seja verdade até certo ponto, existem várias maneiras de encobrir rastros para fins nefastos. Esses métodos incluem o uso de mixers como Tornado Cash para ocultar rastreamento na cadeia; o uso de sistemas da dark web conhecidos como "The Onion Router"; ou simplesmente comprando carteiras de Bitcoin offline de proprietários com um prêmio em dinheiro. A mineração de novos Bitcoins também oferece um certo nível de proteção, já que os tokens não têm histórico na primeira transferência, o que significa que não podem fornecer dados aos investigadores.

Para minerar, a rede Bitcoin precisa de capacidade de processamento computacional. Como o sistema é descentralizado, os criadores do Bitcoin oferecem incentivos para aqueles que fornecem poder computacional. O incentivo é a entrega de novos Bitcoins para os nós que fornecem capacidade de processamento para as transações da rede. 'Mineradores de Bitcoin' investem em 'equipamentos de mineração' (servidores dedicados) para realizar esses cálculos e gerar novos tokens.

A principal variável de custo da mineração de Bitcoin é a energia necessária para alimentar esses servidores, que é uma das razões pelas quais as 'regiões sombreadas' da Rússia são atraentes. Uma pesquisa realizada pela Nftevening.com em setembro de 2024 revelou que 'o custo da mineração de Bitcoin na Irlanda atinge 321.112 dólares, enquanto no Irã, os mineradores pagam apenas 1.324 dólares, uma diferença de mais de 240 vezes'. Mesmo com o Bitcoin próximo a 100.000 dólares, a mineração de Bitcoin continua a ser não lucrativa em várias jurisdições.

As margens do rio Dniestre, Donbass e Abecásia não estão entre os 10 lugares mais baratos para mineração de Bitcoin, pois são zonas cinzentas que estão fora do controle de governos soberanos. Além disso, as formas de acesso à eletricidade nessas áreas não foram registradas por investigações, que se baseiam nos preços de eletricidade divulgados pelo governo. Se o custo da eletricidade é próximo de zero e as áreas relevantes não são reconhecidas internacionalmente, esse tipo de método de pesquisa falhará.

Zona cinzenta

Os "Territórios Sombreados" da margem do rio Dniestre, Donbass e Abecásia (todos sob a "proteção" da Rússia) oferecem oportunidades especiais para a mineração de Bitcoin para aqueles que estão alinhados com o Kremlin.

Margem do rio Dniestre: usando a energia da usina MGRES, cuja combustão é o gás fornecido gratuitamente pela Gazprom. O parque tecnológico criado para atrair mineradores oferece eletricidade a 0,043 dólares por kWh.

Donbass: desde 2021, utiliza eletricidade de usinas a carvão, que normalmente alimentariam a indústria pesada. A eletricidade também pode ser roubada da usina nuclear de Zaporizhzhia. O relatório do departamento de recursos humanos menciona que a Metalúrgica de Donetsk possui um centro de mineração, além de pelo menos mais um, ambos operando sob a proteção do FSB.

Abecásia: desde 2015/16, utiliza eletricidade da usina hidrelétrica Enguri, que faz fronteira com a Geórgia, além de eletricidade russa importada. O custo da eletricidade é tão baixo quanto 0,005 dólares por kWh. No entanto, relatórios de fontes abertas indicam que, desde 2023, a mineração na Abecásia e na Geórgia caiu drasticamente.

Margem do rio Dniestre: um ambiente perfeito para a mineração de Bitcoin

A margem do rio Dniestre tem acesso ao gás gratuito da Gazprom e a uma grande capacidade de geração de eletricidade, tornando-a um local extremamente atraente para a mineração de Bitcoin.

O fator-chave é o arranjo entre a Moldávia e a margem do rio Dniestre em relação ao fornecimento de gás e à geração de eletricidade. Ambas as regiões recebem gás da Gazprom por meio de dutos, e o gás em ambas as regiões é faturado de acordo com o contrato entre a Gazprom e a Moldovagas (50% das ações da Moldovagas são controladas pela Gazprom). No entanto, enquanto a Moldávia paga pelas suas contas de gás, o gás na margem do rio Dniestre é nominalmente adicionado à dívida de cerca de 709 milhões de dólares da Moldovagas, cuja perspectiva de reembolso é pequena e controversa.

Desde que Maia Sandu assumiu a presidência da Moldávia em 2021, o país reduziu sua dependência dessa energia. Mas o que não mudou é que o gás na margem do rio Dniestre é, na verdade, gratuito, utilizado para alimentar a usina MGRES de 2.500 MW. A Moldávia também depende da MGRES para cerca de 80% de sua eletricidade, o que ilustra a estranha interdependência entre entidades que originalmente eram hostis.

Essa energia gratuita é um subsídio de Moscovo, destinado a manter funcionando as indústrias pesadas obsoletas, poluentes e ineficientes da margem do rio Dniestre, incluindo produtos químicos, aço e cimento. Também fornece gás doméstico muito barato, ajudando a consolidar o apoio da população ao regime local.

De acordo com informações do governo da Moldávia, a escala desse subsídio pode ser vista no impressionante consumo de gás de duas entidades: a margem do rio Dniestre (população de 300 mil) consome cerca de 2 bilhões de metros cúbicos por ano, enquanto a Moldávia (população de 2,5 milhões) consome cerca de 1 bilhão de metros cúbicos anualmente. No ponto de entrega, o consumo per capita de gás na margem do rio Dniestre é cerca de 16 vezes maior do que o da Moldávia (no entanto, esse número é compensado pelo fato de que parte do gás da margem do rio Dniestre é usado na usina MGRES para geração de eletricidade e depois vendido à Moldávia). Não está claro se essa situação persistirá até 2025, já que a Ucrânia se recusou a renovar o acordo de trânsito de gás com a Gazprom.

Atualmente, o local oferece um ambiente quase perfeito para a mineração de Bitcoin. Dado que a usina MGRES possui uma grande capacidade elétrica e acesso gratuito ao gás, os incentivos para participar da mineração de Bitcoin são evidentes. Em 2018, a região da margem do rio Dniestre passou uma legislação que estabeleceu uma base legal clara para acelerar o desenvolvimento da mineração de criptomoedas.

Em 2019, uma empresa estatal de mineração chamada 'Tehnopark OJSC' ganhou grande destaque, visando atrair mineradores estrangeiros, oferecendo eletricidade a 0,043 dólares por kWh. Este é um preço extremamente competitivo; de acordo com um estudo do BestBrokers.com, o preço da eletricidade no Cazaquistão em 2024 é de 0,073 dólares por kWh, enquanto nos EUA é de 0,127 dólares por kWh. Embora atualmente não haja dados confiáveis, o fato da margem do rio Dniestre ter acesso a gás gratuito sugere que esse preço pode ser o mais barato do mundo.

De acordo com dados do BestBrokers.com, o consumo de eletricidade por Bitcoin atualmente é de 854.403 kWh (esse número subiu significativamente nos últimos anos). Com base nesses números, isso significa que o custo de eletricidade para cada Bitcoin na margem do rio Dniestre é de 36.739 dólares, enquanto o Bitcoin está em torno de 97.000 dólares. Os números correspondentes para o Cazaquistão são de 62.371 dólares, e para os Estados Unidos, 108.509 dólares (esse número dos EUA é uma média nacional; mineradores podem operar em estados com custos de eletricidade mais baratos).

No entanto, desde 2019, houve praticamente nenhum relato adicional, e o site não está mais ativo, embora tenha funcionado até 2022. Isso não significa que a mineração de Bitcoin na margem do rio Dniestre tenha parado, mas reflete que mineradores internacionais (exceto russos) não se afluxaram para Tiraspol como se esperava. Portanto, dada a necessidade de cautela e as condições de guerra, não há necessidade de publicidade.

Relatórios de ONGs da Moldávia, como a Anticorruptie, indicam que os principais participantes da mineração são a Goweb International Limited e a Tirastel GmbH.

Embora investidores ocidentais alegadamente estejam envolvidos, os "investidores" são principalmente russos, associados à Gazprom (beneficiando-se de parte dos subsídios de gás que a Gazprom fornece à margem do rio Dniestre).

A Goweb International Limited é um caso interessante. O relatório da Anticorruptie indica que, em janeiro de 2018, a entidade das Ilhas Virgens Britânicas, Goweb International Ltd, gastou 8,7 milhões de dólares na compra de equipamentos de mineração de criptomoedas, que foram enviados para a margem do rio Dniestre, com os fundos transferidos através do banco ABLV na Letônia. No mês seguinte, o Departamento do Tesouro dos EUA listou o ABLV como alvo de investigação por 'lavagem de dinheiro institucionalizada' relacionada a 'Azerbaijão, Rússia e Ucrânia'. O ABLV também foi o principal ator no escândalo de 'lavagem de dinheiro' de 2016, onde 1 bilhão de dólares foram roubados de um banco na Moldávia.

O relatório da Anticorruptie afirma:

A Goweb International Limited é uma empresa offshore gerida por um grupo de empresários russos, liderada por Nikita Morozov, especializada na produção e comercialização de equipamentos de mineração.

O site oficial da empresa afirma que possui a maior capacidade de mineração da Moldávia, com 40 MWh, equivalente a seis a oito fazendas de mineração.

Com a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, a capacidade da Moscovo de vender gás internacionalmente diminuiu, e a motivação do estado russo para redirecionar o gás para a mineração de Bitcoin só aumentou.

Maneiras de usar Bitcoin

Há motivos suficientes para acreditar que a mineração de Bitcoin nas "nações sombreadas" opera com o apoio do Kremlin, embora seja realizada por participantes do setor privado. Na margem do rio Dniestre, essa conexão é muito evidente devido à participação direta de Igor Chaika. Ele é nominalmente o representante da margem do rio Dniestre na organização comercial russa "Delovaya Rossiya", mas é amplamente reconhecido como o chefe de fato do serviço de segurança federal na região.

Chaika é filho do ex-procurador-geral da Rússia (2006-2020) Yuri Chaika, que está intimamente ligado ao abuso do sistema judicial pelo Kremlin. Seu pai atualmente é o enviado de Putin para Chechênia, Ramzan Kadyrov. Ao mesmo tempo, seu outro filho, Artem Chaika, é um empresário que atua como conselheiro de Kadyrov para "assuntos humanitários, sociais e econômicos" - provavelmente esse papel lhe dá tempo suficiente para buscar outros interesses.

A rede de investigação dos Bálcãs em Chișinău relatou em 2018 que a região estava passando por uma fase inicial de mineração de Bitcoin:

"Chaika então disse ao Kommersant que ele espera avançar com os planos de Bitcoin. 'Agora temos as condições necessárias para prosseguir.' 'Concordamos com a opinião do chefe da administração de Tiraspol de que, após a entrada em vigor da lei, as autoridades nos fornecerão a infraestrutura para o projeto. Aguardamos sugestões sobre os locais para criar as fazendas de mineração.'

(Wired) relatou que Chaika "disse que estava disposto a investir 400 milhões de rublos na mineração de criptomoedas na margem do rio Dniestre".

De acordo com as sanções impostas a Igor Chaika pelo SECO da Suíça em agosto de 2024, ele é responsável pelo financiamento das atividades de desestabilização do FSB da Federação Russa na Moldávia. A declaração de sanções da Suíça afirma que ele trabalha em estreita colaboração com Dmitry Milyutin, vice-chefe do FSB responsável pelos assuntos da Moldávia. Além disso, Chaika é listado nas sanções junto com indivíduos da Moldávia envolvidos na desestabilização do país (incluindo Ilan Shor e Vladimir Plahotniuc), como mencionado na citação:

"Igor Chaika é um empresário russo que é responsável por arrecadar fundos para os projetos do FSB da Federação Russa, que visam desestabilizar a República da Moldávia. Ele desempenha o papel de 'cofre' da Rússia, transferindo recursos para os ativos do FSB na República da Moldávia para colocar o país sob o controle do Kremlin..."

Dada a função de Chaika desde 2018 na construção de uma colaboração de mineração de Bitcoin entre a Rússia e a margem do rio Dniestre, é provável que o Bitcoin gerado seja utilizado para minar a estabilidade da Moldávia.

O uso de Bitcoin para apoiar as operações subversivas do Kremlin vai muito além da Moldávia. Por exemplo, uma brecha nos EUA permite doações políticas anônimas abaixo de 200 dólares. Grandes quantias podem ser automaticamente divididas e transferidas eletronicamente em pequenas doações, enquanto as criptomoedas adicionam uma camada de anonimato. Por exemplo, em 2020, a equipe de campanha de Trump arrecadou 378 milhões de dólares dessa forma, enquanto a equipe de Biden levantou 406 milhões de dólares. Nem a própria equipe de campanha nem a Comissão Eleitoral Federal puderam determinar de onde vieram esses quase 800 milhões de dólares.

Em 2018, o Departamento de Justiça dos EUA processou Netyksho e outros, acusando-os de serem membros ou cúmplices da 26165 do GRU (Diretório Principal de Inteligência da Rússia) (mais amplamente conhecido como 'Fancy Bear') e da 74455 (também conhecida como 'Sandworm'). O processo alegou que a organização foi responsável pelos incidentes DCLeaks e Guccifer 2.0:

"Embora os conspiradores transacionem em várias moedas (incluindo dólares), eles usam principalmente Bitcoin para comprar servidores, registrar domínios e pagar por atividades de hackers de outras maneiras..."

As criptomoedas também são eficazes na evasão de sanções e no pagamento de equipamentos militares de contrabando. Isso é especialmente verdadeiro ao colaborar com parceiros como a Índia, onde os bancos desses países podem ser facilmente alvo de sanções secundárias se forem descobertos. Em setembro de 2024, o Reino Unido (Financial Times) divulgou materiais vazados detalhando a criação de uma rota de negócios 'fechada' Índia-Rússia para evasão de sanções.

Poida descreveu um plano em cinco etapas para ajudar a Rússia a usar rublos e estabelecer um fornecimento estável de componentes de uso dual militar e civil. A Rússia criará um "sistema de pagamento fechado" entre empresas russas e indianas, sem supervisão de países ocidentais, "incluindo o uso de ativos financeiros digitais"...

Em novembro de 2024, o Departamento do Tesouro dos EUA sancionou quatro funcionários da filial do VTB Bank em Xangai e da Sberbank da Federação Russa em Nova Délhi, um movimento que provavelmente serve como um aviso para o setor bancário. Espera-se que essas restrições aumentem o apelo do Bitcoin como meio de liquidação, pois não expõe os bancos locais a riscos.

Dada essa análise, a mineração de Bitcoin nas 'regiões sombreadas' da Rússia é uma maneira inegável, lucrativa e na prática anônima de converter uma grande quantidade de poder em dinheiro. Esse dinheiro pode enriquecer os russos com conexões, permitindo que eles vivam vidas prósperas em lugares como Dubai e Turquia.

Isso também traz várias ameaças. Essas ameaças incluem desestabilizar países vizinhos, exercer influência secreta sobre democracias ocidentais e colaborar com aliados como a Índia para facilitar a evasão de sanções.

À medida que os aliados da Ucrânia continuam a trabalhar para limitar o financiamento e os recursos da guerra de agressão ilegal do Kremlin na Ucrânia, combater essa atividade de mineração é uma prioridade importante que requer esforços dedicados. Isso pode incluir: medidas de guerra cibernética; rastreamento de blockchain para novos tokens cunhados para expor aqueles relacionados a atividades ilegais da Rússia; sanções a plataformas de ativos digitais que promovem a mineração; desenvolver políticas para cortar a energia barata nas "regiões sombreadas". As sanções ocidentais muitas vezes ficam atrás das estratégias de evasão da Rússia; quando se trata da vulnerabilidade da mineração de Bitcoin, a evidência é clara.

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